Um poema no bolso


Carlos Faria

Falava tão de dentro que as suas mãos cantavam. Soltava-se em gestos largos como um marinheiro cheio de júbilo por sentir os pés na terra amada. Quando vinha de S. Jorge, a ilha amada, trazia os olhos cheios de poemas, o verde fosforescente das escarpas e o secreto rumor do sol que colhia em cada rua, metaforicamente descalço sobre o silêncio.

Encontrámo-nos muitas vezes na saudosa piscina de S. Pedro quando ele aparecia em S. Miguel. Muitas vezes puxou do seu caderno de apontamentos para me ler um poema com a sua voz de barítono em descanso. Quase sempre eram poemas que ele apaixonadamente dedicava à sua ilha açoriana de eleição: S. Jorge. Enquanto lia as ondas do mar rebentavam contra as rochas negras e eu bebia as suas palavras como se fossem água.

Eu era jovem e não percebia ainda muito bem que um poeta não tem país e não tem terra. O seu coração é uma viagem constante pelo Tempo e pelas secretas geografias da vida.

Oiço os adágios de Albinoni e recordo a noite em que eu, o Carlos Faria, o Onésimo Almeida, o Vamberto Freitas e a Maria Aurora Homem estávamos numa esplanada nas Velas. O Carlos, exuberante como sempre, contava histórias naquele ritmo que era tão seu, cheio de vida, energia e esplendor. Foi um serão, como sempre, memorável.

Quando um amigo parte, tudo passa na memória como um filme. Tão pobres, frágeis e efémeros, que podemos fazer senão gastar em palavras o que nos vai no coração? No fundo, queremos apenas dizer que um amigo fica para sempre dentro de nós como uma árvore. Que as suas folhas foram todos os momentos de convívio são, e que a sua vida nos marcou e foi relevante neste mundo.

O Carlos Faria era um português antigo, nobre, cuja amizade não esmorecia como uma chama quase no fim. Tinha o abraço de sempre nos seus braços de ex-campeão de halterofilismo de Portugal, no bolso da camisa os últimos poemas, na voz um calor sem ressentimentos, sempre jovial, felino.

Sim, Carlos, continuo a ouvir-te. Continuaremos sempre, os teus amigos.

Não descanses: lê os teus poemas aos anjos que passam. Canta a ilha nessa dimensão em que o Tempo é apenas uma gota de silêncio entre os dedos.

Eduardo Bettencourt Pinto
——–

Flash (A União, 18 Nov. 1972)*
Karlos Faria

De avião, da Terceira para o Faial… Aqueles minutos breves por cima de S. Jorge… A ilha a correr, ela própria a correr, toda verde e esbelta, virgem e nua, de verde e azul!

Sobrevoar S. Jorge dá-me uma alegria nova e diferente. É um longo corpo de pedra, uma natureza insular que sinto à sua altura humana e geográfica. S. Jorge: a ilha, a mais ilha, a mais demorada, tranquila, isolada de silêncio, longa garupa dum cavalo de basalto! A ilha mais ilha, a povoar o mar que a viaja!

Vou de avião por cima de S. Jorge, cortando a ilha em oblíquo, assim: para que a ilha demore o mais tempo possível na sua cintura de serra… Vou de avião: mas não me sinto mais alto: estou à altura das suas fajãs, ombro a ombro com o seu povo!

S. Jorge: um grito de pedra silencioso e verde. E nuvens como punhos cerrados, depois como mãos abertas! E a ilha, sempre a ilha; coração de pedra, mas a pulsar, a bater, a mergulhar no mar… ah! como em S. Jorge o mar é menos longo, peito aberto do Topo aos Rosais…

De avião: S. Jorge sabe-me a caminhada. Pareço que caminho, toco com os lábios o Pico da Esperança, que caminho… Vou de avião… e desço descalço a Ribeira dos Vimes até à Caldeira… Vou de avião?

O meu companheiro de viagem diz: “esta ilha é S. Jorge. Estamos a passar por cima de S. Jorge”. Isto é fisicamente verdade, a verdade dum passageiro logicamente inviolável. Eu não. Eu sinto que vou por S. Jorge. Por S. Jorge estrada, freguesia, povo, canada, serra, cor, drama, silêncio, natureza, alegria, respiração. Para o meu companheiro a viagem é passar, para mim é estar.

Ele vê-se do avião e no avião. Eu vejo-me de terra e é lá que existo, e penso que os aviões são realidades falsas ou breves enganos do alto…

Não há engano possível: a única realidade é S. Jorge!

* Texto de Carlos Faria: cortesia de Onésimo Almeida e Artur Goulart

12 pensamentos sobre “Um poema no bolso

  1. Meu caro Eduardo:

    Obrigado por estas memórias do nosso querido Karlos Faria, cujo perfil tão bem traçaste em tão breves palavras. Ele era exactamente assim. Estou a ouvir-lhe a voz e as suas intermináveis estórias cheias de calor e carinho por S. Jorge e pelos Açores.
    Não há cura para a nostalgia que a morte provoca. Mas podemos ir tomando umas gotas para adoçarmos um pouco a memória dele relendo os seus poemas e crónicas como essa que o Artur Goulart desencantou dos seus ficheiros.

    Um grande abraço do
    onésimo

    1. O dia está a acabar, mas não esqueci o grande amigo Carlos Faria, e que o Eduardo tão bem soube retratar. Apraz-me recordar uma frase do Carlos, do seu cancioneiro pânico, como lhe chamava, publicada em Julho de 69, em epígrafe no “Glacial”, e que continua com a mesma força de então:
      “O amor é o país que nos salva.”
      Grande abraço
      Artur Goulart

  2. Caros Amigos Eduardo e Onésimo

    Desculpem dirigir-me a vós desta forma mas não encontro outra ,o meu Pai falava tanto de vós que sinto que vos conheço desde sempre.

    Neste momento , tão triste para todos nós, resta-me agradecer por terem enriquecido tanto a sua vida com a vossa amizade e por continuarem a manter viva a sua memória

    Não sei onde o meu Pai está agora, mas tenho a certeza que há fajãs por lá.

    Um abraço amigo
    Carlos Nuno Faria

  3. Que bonitas as sua palavras sobre o meu pai.
    Muito obrigada.
    Fiquei a perceber ainda melhor porque gostava tanto dos Açores e dos seus Amigos.

    Também faço votos de que não descanse! Também espero que continue a ler os seus poemas! Agora aos anjos.
    Eu também vou continuar a ouvi-lo!

    Isabel Patricia

  4. O Carlos Faria faz parte do meu imaginário de juventude na nossa rua. Lembro-me quando chegava a casa de uma das suas muitas viagens. Lembro-me que não entrava em casa antes de falar ao filho que, como eu, brincou naquela famosa rua sem saída, ali mesmo em frente ao colégio militar. Lembro-me também que era um poeta, um homem peculiar……via-o poucas vezes mas quando o via lembro-me que chegava a casa e dizia sempre aos meus pais que tinha visto o pai do canú…..de algum modo ele me dizia algo, sem muito falar com ele e mesmo sem muito ver…….
    Quando o pai de um amigo meu morre é como se o meu pai voltasse também a morrer………

  5. Tomámos a liberdade de aproveitar estes magníficos textos, aos quais fazemos a devida vénia, tendo-os publicado no blogue “recados para memória futura”, que pertence a todos os que nele queiram participar, incluindo Eduardo Bettencourt Pinto, a quem remetemos as mais amistosas saudações.

  6. Carlos 06/10/2011

    Na tentativa de te encontrar, soube que partiste. Como não nos despedimos, lá nos encontraremos, um dia, onde as lágrimas são proibidas.

    Isabel Maria

  7. Privei com o amigo Carlos Faria de perto e na minha Ilha , pela qual se apaixonou nos seus poemas.Os homens passam , mas as obras ficam.Que S.Jorge sirva de mote para mais poetas e escritores.Todos que o conheceram nunca esquecerão de ler e saborear a sua prosa e poesia !Bem haja e parabéns à filha que um tal pai teve!

  8. Boa noite… Realmente não sei se isto vai ser lido, mas já esgotei as minhas tentativas de contactar Eduardo B. P. Sou o Carlos Lopes Pires e há muito que não tenho os seus contactos, que já tive. Um abraço

    cmpires@fpce.uc.pt

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