Scrappy

/Eduardo Bettencourt Pinto

Os olhos luziam no escuro da caixa enquanto, num carrinho do aeroporto, nos aproximávamos do carro, estacionado frente à saída da zona internacional. Scrappy veio do albergue canino A Dog’s New Life, na Baía de Banderas, Bucerias, México, a cerca de 20 quilómetros a norte de Puerto Vallarta.  Este canil, criado por Jessica Garibay Pineda, natural da cidade do México, iniciou-se em 2018.

Vinha cansado, letárgico e desconfiado. Deixámo-lo sair brevemente para aliviar a bexiga e saciar a sede. Cheirou o ar ainda frio de Março de cabeça erguida numa vã tentativa de identificar o local. Depois olhou para nós com uma expressão curiosa.

Foi difícil meter a caixa, de plástico duro, no assento de trás do carro. Scrappy, rijo, atlético, embora de tamanho mediano, voltou à caixa de um salto. Acomodou-se com a resignação de um penitenciário sem recursos.

Chegámos ao apartamento trinta e cinco minutos depois. A noite, cerrada, deixava na relva uma mancha húmida e luzidia do rocio nocturno. Scrappy farejou os arbustos e a relva com a eficiência de um radar. Alçou depois a pata hercúlea asseverando a sua autoridade de macho.

Mal entrámos no apartamento fomos directos à cozinha.

Devorou num instante duas rações. O prato de alumínio ficou a brilhar. Parecia ter sido lavado com esmero e lixívia. Fixou em nós um olhar insistente. Entreolhámo-nos. Não, era melhor ficar por ali. Scrappy comeria até inchar como um elefante.

Dormiu a noite inteira como um anjo saciado. Levantou-se pelas sete da manhã, revigorado e com espírito de missão. Sacudiu as orelhas, espreguiçou-se, e olhou para mim com uma expressão inquisidora como se quisesse comunicar comigo em espanhol:

 «Qué hacemos, amigo?»

Piscou os olhos escuros, lunares e enigmáticos, enquanto lhe acariciava o pelo curto das costas.

«Entonces?»

Ok, vamos embora.

Na rua, voltou à sua actividade de inspector – farejando, alçando a pata curta e musculosa quando julgava pertinente, e tudo o mais que um cão faz com o descaro da espécie.

De coleira e trela, e prisioneiro do meu braço, era evidente a sua estranheza. Não estava habituado a ser refreado. Puxava quanto podia, irreverente e ansioso. Vinha acostumado ao largo espaço do canil, às corridas sem restrições nos longos e solares dias mexicanos. Quando andou abandonado pelas ruas, esteve sujeito às confrontações territoriais e de sobrevivência com outros cães. Desse tempo ostentava sequelas aqui e ali no focinho de guerreiro. Suponho que também os outros cães exibam as marcas dos seus dentes.

A sua adaptabilidade, porém, ao novo ambiente foi notável. Em poucas horas habituou-se às normas que lhe foram impostas em termos de comportamento e restrições, mostrando, por outro lado, uma insuspeitável doçura.

Na viagem de hora e meia no ferry, a meio da tarde, portou-se como um cavalheiro.

Na gare esperava o casal que o adoptara. Tínhamos sido apenas os intermediários. Ajudámos voluntariamente nesta última etapa. Os novos donos, vivendo nos arredores de Vitória,  estavam sujeitos às limitações do horário do ferry. Como Scrappy chegava tarde, teriam de ficar num hotel e regressar a casa no dia seguinte.

Enquanto os três se afastavam no parque de estacionamento em direcção ao carro, Scrappy voltava-se para trás, confuso. Teria corrido para nós se fosse solto.

Senti um nó na garganta. Sentei-me num banco virado para o mar. Precisava de distrair os olhos e aquele estranho sentimento de perda.

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Recordando Marcolino Candeias

/Eduardo Bettencourt Pinto

Escrevo-te consciente de que o faço em tua memória. Não estás ao computador, em casa ou no teu gabinete da Biblioteca. Não estás na tua ilha, nem em lugar algum desta vida por que passaste, tão depressa como o vento. Por isso não poderás ler isto que te escrevo num escuro dia de Janeiro, sufocante como uma nuvem de cinzas, tão longe de Portugal, nesta pequena casa que habito, cheia de livros, pequenas recordações e três plantas que adoro como se fossem crianças.

Um homem por vezes torna-se tão sensível como uma gota de orvalho, e tudo o que nos rodeia e emociona ganha um valor e uma intensidade excepcionais. Sei que compreenderias isto. Trilhaste também este caminho na respiração do mundo, e o valor das coisas e da vida estava intrinsecamente ligado às palpitações do coração. Tinhas também uma casa, mulher e filhos, o sol e a chuva da ilha que foram a tua mãe, o mar de prata e azul-turquesa que trazias da rua para os teus poemas.

Não deixaste nas rochas que protegem a terra dos temporais a impressão das tuas mãos, ou dos teus pés, caminhante que foste. Não como no poema de António Machado, errante nas paixões por inóspitos caminhos, mas num itinerário marcado a traço preciso nessas deambulações que, de geração em geração, levam os ilhéus para as lágrimas de outros destinos.

Não deixaste estátuas nem troféus porque foste um poeta de incensos, luto e luta, de grandes espaços abertos nos céus, e, porque foste sobretudo uma ave que poisou nos mastros mais altos da navegação lírica, observando daí, com verbo preciso e grande rigor artístico, o amor e as complexidades da alma, a bondade e a tirania, e assim foste libertando palavras como quem atira flores para uma multidão carente de beleza.

Sei que escrevo para o grande silêncio da tua imensa ausência, de coração triste, grato, no entanto, pela tua amizade, verdadeiro poeta que foste, de palavras e emoções.

É isso o que eu deixo aqui, nesta vaga e imemorial tarde de Janeiro, nestas palavras. Tão vãs, eu sei, porque as não poderás ler.

Comovem-me, no entanto, porque são para ti, querido amigo, agora e sempre, na memória de ti e na frescura que encontro sempre quando releio os teus livros, preso ao fascínio do teu verbo e do teu talento.

Um abraço, Marcolino. Como num poema.

A maçã*

/Eduardo Bettencourt Pinto

As sextas-feiras costumam ser boas.

Mas esta manhã, quando me dirigia ao supermercado, caiu-me uma maçã na cabeça.

«Ah, corisco!»

Olhei para cima e vi um corvo no fio de electricidade.

Crocitou descaradamente. Parecia estar gozando comigo. Ameacei-o com o punho fechado mas não fez diferença nenhuma.

Tomei um tylenol quando cheguei a casa. Corisco corvo. Ia dando cabo da minha cabeça. Ainda vai funcionando relativamente bem, embora já com os estragos da idade e cabelos brancos como nas fotografias dos antigos.

Não são muitas, confesso com pena. Naquele tempo o fotógrafo só aparecia na freguesia uma vez por ano.

Nunca o vi bem-disposto. Vinha com a barba de não sei quantos dias e os olhos  inchados.

Do alto da rua, era como se viesse do céu: enorme, segurando um guarda-chuva preto e montado num burro velho.

O animal era mais vagaroso que uma pedra dos caminhos. Tinha pena do pobrinho, coitado, com aquela besta malcriada a fazer-lhe peso nas costas. Ainda por cima castigava-lhe os flancos com as botas lamacentas e azedas para que andasse mais depressa.

Irritada com a história do corvo, meti no lixo as maçãs que tinha na cozinha. Por aí se pode ver o fogo que me abrasava por dentro.

Quando a minha colega apareceu para irmos almoçar ao clube português, quase recusei. Mas lá fomos.

A sala estava cheia que misericórdia. Não era costume.

Mal nos sentámos à mesa, redonda e muito larga, um sujeito muito sério subiu ao palco. Aproximou-se do microfone e, solene,  alertou-nos para o facto de que estavam ali duas pessoas muito importantes.

Logo de seguida apareceram dois sujeitos de fato e gravata. Toda a gente se levantou para os aplaudir. Até as senhoras que equilibravam as terrinas da sopa começaram a mover-se com passos de veludo.

Quando se aproximaram da nossa mesa, o cheiro das couves fez-me esquecer o episódio desta manhã. Admito até que não prestei atenção àquilo que os senhores disseram.

Consolei-me com aquele caldo verde.

Gosto destes almoços e jantares da comunidade. É bom comer o que é nosso. Estar entre aqueles que falam a nossa língua. O cheiro da nossa cozinha. As conversas. Os sotaques do nosso Portugal.

E logo chegou a altura da sobremesa. Levava a colher à boca e o mesmo sujeito que anunciou a presença dos senhores importantes voltou ao palco. Tocou no microfone com dois dedos ansiosos a ver se estava ligado.

«Estão-me a ouvir?»

Um espertinho da mesa do lado gracejou:

«Não estamos!»

«Hã? Não me estão a ouvir?»

O espertinho riu-se, sacudindo o colarinho da camisa de xadrez, dessas de flanela que nos ajudam a suportar o corisco inverno canadiano.

Mas fez-lhe mal a galhofa: tossiu, tossiu, cheio de nicotina. Não parava. Era meter-lhe um tubo de oxigénio pelas goelas abaixo.

Os  colegas da mesa ficaram incomodados. Um deles até lhe deu umas pancadinhas de conforto nas costas.

A senhora que estava sentada do seu lado direito, e que parecia a esposa, repreendeu-o com autoridade:

«Olha, vai tossir lá para fora. Já tens esta gente toda assustada. Devem pensar que não apanhaste as vacinas da Covid!»

«Bom, o comediante acaba de sair. Já posso falar – disse o cavalheiro do palco em tom agastado. É só um breve anúncio. A pessoa que tem um Toyota branco com a matrícula x  por favor dirija-se ao parque de estacionamento. Está a bloquear outro veículo que pretende sair.»

A minha colega bateu-me no braço.

«Não é o teu carro?»

Saí com o peso do almoço a atrasar-me os passos. Nem sequer uma digestão descansada se pode ter.

Encontrei um sujeito baixote encostado ao meu carro e de braços cruzados. Tinha bigode grisalho e um boné vermelho enfiado na cabeça.

Falou-me num inglês toldado pelo tinto do almoço.

«A culpa é do governo, dar carta às mulheres! Onde é que foste comprar a carta de condução?»

«À mercearia do senhor José, na tua freguesia. Na mesma onde compraste a tua», respondi-lhe em português.

O baboso. Se calhar até leva da mulher mas ali armado em chefe de estado.

«Já vejo que és da minha ilha, mas da minha freguesia é que não. Na minha, as mulheres só saem de casa para irem à igreja.»

«Além de seres tolo, és machista. Não é melhor ires para casa cozer a bebedeira em frente da televisão? Isto é, se a tua mulher te deixar entrar em casa.»

«O quê?»

O queixo duplo tremia-lhe de raiva. Lembrou-me um pelicano e desatei a rir.

O seu ego machista caiu por terra. 

«De que te estás a rir, sua lavadeira com carta de condução? Nem sequer sabes parcar o carro!»

Pensei: esta mão que pode apertar o pescoço do estuporado corvo desta manhã até ele cantar um fado da Amália, pode também esganar este.

«Ó caganita de melro! Já alguma vez levaste com uma mala nas ventas?»

Ficou a olhar para mim com cara de asno. Deu-me repugnância. Passei por ele como quem foge de um mau-cheiro e meti-me no carro.

***

«Querida, desculpa a má-língua» disse à minha colega minutos depois quando virava para a autoestrada. Estava furiosa e não parava de insultar aquele pato anão.

Ela não respondeu.

«Também estás inchada comigo?»

Nada.

Preocupada, voltei-me. Mas no assento só estava a minha mala. Fiquei com os cabelos em pé.

Nesse momento o telemóvel tocou. Como o meu carro é novo e tem estas coisas todas modernas, foi só tocar no painel para atender.

«Eh mulhé, aconteceu alguma coisa? Chamo a polícia? Estou estranhando a demora! Já se foi tudo embora. Só cá estão uns barulhentos a jogar às cartas. Guerreiam que misericórdia e dão punhadas na mesa como se estivessem a matar moscas. Isto ainda vai dar arressaca.»

Não estava com aço para voltar atrás, mas lá tinha que ser.

«Não te preocupes, querida. Daqui a cinco minutos já estou aí.»

As sextas-feiras costumavam ser boas, pensei, guinando à direita.

* conto inédito

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O pó do Natal

/Eduardo Bettencourt Pinto

I will honour Christmas in my heart, and try to keep it all the year.
– Charles Dickens

Sentado de costas para a janela da minha sala, reparo no Pai Natal da minha mãe. É um velho de longas barbas brancas e óculos de aros redondos. Está aqui comigo o ano inteiro. Tenho pouco espaço nesta casa, quase todo ocupado por estantes com livros. Mas a verdade é que não tenho coragem de o arrumar numa caixa, forçá-lo ao obscurantismo como quem esconde um segredo inconveniente.

Quando dezembro chegava, com frio e nostalgia, a minha mãe munia-se de um pano húmido. Entregava-se, com enorme paciência, ao meticuloso assalto ao pó caseiro.

Desde muito novo que a observava nesse microscópico labor anual. Era uma tarefa metódica, exigente, e que não descurava o mais ínfimo pormenor. Provavelmente foi um hábito que adquiriu da minha avó Irene, muito escrupulosa com as tradições e a ordem da casa. Enternecia-me ver a minha mãe naquele afã, com o vigor, o respeito e o imenso carinho que nutria pela Quadra Natalícia.

Como quase todas as crianças, cresci abraçado ao imaginário do Pai Natal, uma das mais belas mitologias da infância. A sua figura bonacheirona, de velho bondoso, e cujo objetivo de vida consistia em dar alegria às crianças, marcou-me profundamente. Hoje, refletindo sobre a sua imagem, considero-a a mentira mais inócua do mundo. No entanto, e para minha consternação, vejo que a nebulosidade dos tempos elevou o Pai Natal a uma posição emblemática do paganismo social. Fugiu, em certos setores da população mundial, ao paradigma da efeméride: o nascimento de Jesus. Os descrentes assumem o Natal como um evento cujo objetivo centra-se no ajuntamento familiar, na troca de presentes e nas iguarias em redor da mesa. Os cristãos, por sua vez, vergam-se com reverência perante Jesus e ao imenso significado do Seu nascimento. É por Ele que toda esta Quadra faz sentido.

Então o que significa o Pai Natal?

Num outro artigo, escrito há alguns anos, contei que o meu Pai Natal angolano tinha sido o meu pai. Ainda oiço na memória o rumor dos seus movimentos no escuro, junto aos sapatos da nossa infância, agachado sobre os presentes muito humildes que ali deixava. Comove-me sempre esta recordação.

Antes dessa descoberta, que me dececionou e comoveu, aprendera dos meus pais que o Pai Natal ocupava um lugar subalterno em relação a Deus. Era um anjo com poderes especiais cujo objetivo consistia em iluminar a manhã de Natal com a luz da sua bondade, distribuindo brinquedos aos meninos enquanto estes dormiam.

Mais tarde vim a descobrir que a figura do Pai Natal teve origem em São Nicolau, que nasceu na Grécia 280 anos depois de Cristo, e ordenado bispo de Myra, na Turquia. Era conhecido pelo seu altruísmo, sobretudo em relação aos mais pequenos. A figura popular de hoje advém de um livro de Washington Irving, publicado em 1809 nos Estados Unidos, em que o retratava como um sujeito de cachimbo, solto nos ares num trenó voador. Irving nasceu em Nova Iorque a 3 de abril de 1783 e viria a falecer em 1859, aos 76 anos.

A tarde tornou-se noite e com ela a saudade de outros tempos. Reparo no Pai Natal da minha sala com o olhar centrado no vazio. Recordo-me dos meus pais e de todos os meus mortos que hoje vivem agrupados em fotografias a preto e branco nos meus álbuns de família. Como continuar a tradição da minha mãe, acendrando o espaço da casa, limpando o pó do tempo e do esquecimento?

 Enquadro o Pai Natal num contexto pessoal, como uma figura tutelar da infância, assim como as peças de roupa que a minha mãe guardou de quando era ainda menino e que guardo, com imenso carinho, numa gaveta da cómoda. Asseguro-me de que recordar a inocência e o amor são duas inequívocas formas de chegarmos ao espírito desta Quadra, tão bela e emocionalmente inigualável no contexto do imaginário infantil.

Mas o nascimento de Jesus, e que festejo com veneração, é que norteia o meu compromisso com a vida e a esperança.

Entrevista à nostalgia

[Eduardo Bettencourt Pinto]

Image: |rihaij| – from pixabay.com

«Tinha onze anos quando vim aqui pela primeira vez com amigas da escola» disse E. «Viviam nesta ilha. Falavam-me muito de Taco, um cavalo branco, velho e dócil. »

Saíram a correr do ferry. Os cavalos estavam mesmo ali, do lado esquerdo quem sai, num descampado verde. Pastavam com o mar pela frente, descontraídos e livres. Hoje há ali uma marina, barreira alta de mastros quebrando a paisagem, outrora aberta.                                                                                                           

«Impressionou-me muito a beleza de Taco, o porte altivo e sereno. Intimidou-me, claro. Toquei nele um pouco assustada mas ele não reagiu. Sacudiu a cabeça. Não foi pelo meu contacto mas para afastar uma mosca na orelha. Gostei logo dele. Apesar de Taco ser manso, receei montá-lo. Mas um coro de vozes incentivou-me e acabei por fechar os olhos ao medo. As minhas amigas ajudaram-me – fizeram um degrau com a palma das mãos e os dedos entrelaçados. Apoiei o pé direito e, num impulso,  achei-me no topo do mundo. Ele não se mexeu, como se compreendesse o que se estava a passar. As minhas mãos tremiam muito quando segurei as rédeas. Depois fui ganhando confiança. Para Taco, um possante cavalo, eu não seria mais pesada do que um beija-flor.»                                                                              

Cinco ou seis cavalos andavam soltos pela ilha. O dono, um fazendeiro do interior da província de British Columbia não podia mantê-los. Então trouxe-os para cá. Poderiam sobreviver à solta. O clima, ameno no longo e frio inverno canadiano, era mais tolerável e a erva abundante. O fazendeiro soltou-os seguro de que não enfrentariam dificuldades em sobreviver.

 «Quarenta e quatro anos depois, falar neste episódio parece-me uma fábula. A ilha não é a mesma. Não cresceu para o mar nem a erosão a diminuiu.  Ocupou-se. Naquele tempo, uma família da classe média podia comprar casa nesta ilha. Hoje não. Como em todos os lugares aprazíveis ao espírito e à vista, habitação aqui só está ao alcance da classe endinheirada.»

Há um mapa muito definido nas suas palavras e nele avoluma-se o espaço da nostalgia. O mundo é uma casa que habitamos dentro de nós.

Acrescenta E:

«Gostava daquele tempo. Era mais são. A liberdade que tínhamos nessa altura seria impensável hoje.  A inocência dura muito pouco na vida das pessoas na era da internet. O conhecimento do mal propaga-se vertiginosamente.  A suspeita e o protagonismo. A desertificação social começa no ecrã de um telemóvel. Quando se constroem casas onde havia árvores derruba-se o passado para redesenharmos a vida com cimento. Neste local onde andámos, eu e Taco, a vista está agora ocupada com barcos ancorados. Só reconheço aquele tempo nos pedaços de memória que vou reconstruindo como a uma casa em ruínas.»

A neblina cobre os montes. Há uma beleza surda e triste na cor das árvores. Não tarda o inverno. O ar húmido da tarde avança, lânguido, até nós. Chove intermitentemente. Os meteorologistas anunciam temporal – ventos fortes e precipitação forte.

A galeria de arte e a biblioteca estão abertas. Abre-se a porta e recebe-nos uma agradável sensação de calor. Cresce dos livros um silêncio intemporal. Reparo, através das janelas amplas e húmidas, a longa fila de automóveis para o ferry.

A luz florescente do teto incendia de branco os cabelos de E. Saímos meia hora depois.

Um carro passa e ainda oiço estas palavras de E antes de atravessarmos a rua:

«Volto sempre a esta ilha para compreender a história de outros dias. O mundo era outro e as meninas andavam de cavalo mesmo sob a fosforescente mornidão das chuvas. Hoje a liberdade é um slogan. Podemos barafustar mas a verdade é que ninguém nos ouve. Vamos empobrecendo literalmente. Há um riso cínico no reflexo ambíguo destes tempos. E esse não se esconde por detrás das máscaras do COVID. É mais sinistro e subtil – está ao nosso lado e não o vemos.»                                                                                                                                                          

Calor e optimismo

/Eduardo Bettencourt Pinto

Eu e o meu filho Fábio observamos o pardal. Vagueia na esplanada por entre as mesas vazias, acalorado e de bico aberto, debicando aqui e ali. Estamos sob uma inusitada e extraordinária onda de calor acima dos 40 graus.

O bicho, incomodado com a elevada temperatura aproxima-se, junto à porta de entrada do café, da tigela de alumínio com água para os cães. Dá um saltinho e deixa-se ficar na beira. Vai refrescar-se ou beber? Nem uma coisa nem outra. Ignora a água e salta para o chão. Nesse momento um sujeito sai do café e o pássaro assusta-se e foge.

Não foi uma escolha sensata termos saído de mota, como constatarei depois.

No percurso até à loja, meia-hora mais tarde, a onda de calor é intolerável. Vou depressa. Mas é como se tivesse entrado numa fogueira a uma velocidade de jacto. Nunca senti nada assim. Nem mesmo em Luanda.

Ao chegar a casa, o indicador de temperatura da mota está no máximo. A ventoinha do radiador trabalha freneticamente.

Quando abro a porta de casa, o bafo ardente recorda-me uma sauna. (No dia seguinte subiria até aos 39.5 graus!) Mesmo assim, está mais fresco do que lá fora. Ligo o pequeno aparelho de ar-condicionado e espero por um milagre.

Diante do aparelho acode-me um sopro de ar fresco. Estendo os braços e desaperto dois botões da camisa. É ineficaz. Teria de ficar ali especado a tarde inteira e parte da noite até experimentar qualquer alívio.

Na varanda, resigno-me à evidência: não poderei estar em casa sem perder a sanidade.

Não oiço os pássaros. Em dias soalheiros, em dias claros e brancos e de céu azul, cantam nas proximidades. Sobretudo na velha árvore do meu vizinho Gerry.

Descubro-o no quintal, sem camisa, sentado a uma mesa de madeira e a beber cerveja fresca. Samy, o cão da Coreia do Sul, não ladra como de costume. Ignora-me completamente. Está afogueado e sem energia para exercitar a sua proverbial antipatia.

Regresso à varanda. O chão arde como se caminhasse sobre uma fogueira. Hoje ninguém necessita de um fogão para fazer biscoitos. Basta colocar a bandeja ao sol e voltar meia-hora depois.

Ironia ou optimismo?

Por estranha analogia (efeitos do calor?), penso no exemplo mais radical de optimismo que observei até hoje. Aconteceu em Luanda.

Num dia de imenso e abafado calor, cintilantes linhas de suor desciam o rosto do meu interlocutor. Abanava a camisa com desespero e mão suada. Parecia ter saído a correr de um fogão de padaria. Frenético, não sacudia o calor, mas a sua evidência. Num tom sonâmbulo e arrastado, formulou esta luminosa frase:

– Hoje está calorzinho, amigo! Quase dá para um mergulho na praia.

– Diminutivos não se aplicam bem à situação! – contrapus. – Está mesmo muito calor. Insuportável até.

– Não seja pessimista!

Encolhi os ombros. Não valia a pena argumentar. Um optimista de serviço nunca capitula. Nos piores momentos até consegue ver, através de uma parede, um palhaço a sorrir do outro lado.

Gostava de ser minimamente optimista para poder observar esse prodígio. Como na vida as coisas práticas são mais eficazes, vou procurar refúgio no centro comercial. Se tomar um café, não sentirei o suor correr-me pelas costas abaixo.

Esse é o meu optimismo mais plausível.

P.S. Para que se tenha uma pequena ideia deste calor, Lytton, uma pequena localidade no interior de British Columbia, alcançou 49.6 graus centígrados! Um incêndio de proporções inimagináveis acabaria por devastar a pequena vila com 249 habitantes (censos de 2016), transformando tudo em cinzas. Um vizinho, a duas casas da minha, faleceu, vitimado pelo calor. Em Vancouver e arredores pereceram até hoje 719 pessoas.

Adeus a uma cidade

/Eduardo Bettencourt Pinto

One day I will be a bird, and will snatch my being

out of nothingness.

Mohmoud Darwish

Acabei há pouco de almoçar. Sentado a uma mesa do restaurante vou reparando, através da ampla janela que se abre ao passeio, no movimento da rua. O furor da chuva não abranda. Consulto o relógio e fico angustiado: em menos de duas horas entrego o apartamento aos novos donos.

Subestimei a ferocidade das nuvens escuras que povoam, extemporâneas, o céu de Agosto. Não percebo este clima: em poucos dias saímos de uma temperatura estacionada nos 30 graus centígrados para valores quase outonais.

Sem o guarda-chuva chegarei a casa encharcado. Chamar um táxi parece-me, no entanto, excessivo. A bandeirada, demasiado curta, não justificaria o esforço do motorista. Saio, enfim, contrariado.

Na esquina, aguardando que o semáforo mude, a chuva penetra-me a roupa e escorre-me pelas costas. A eternidade é feita de segundos intransponíveis. Observo, com rancor e impaciência, o trânsito de uma cidade que nunca cativou o meu afecto. Dos quase cinco anos em que aqui vivi, conto pelos dedos os momentos de euforia. Partirei dentro de poucas horas. Não sinto remorsos nem pena. As cores dos dias que se foram enferrujaram como um barco abandonado num cais.

Os meus haveres estão todos num contentor. Desfiz-me de muitas coisas para caber tudo. Ofereci livros mas ainda fiquei com uma biblioteca substancial. Foi durante o processo de escolha, enquanto os ia colocando em caixotes de papelão, que me fui dando conta da inexorável passagem do tempo. Quanta devastação trouxe, quantas vidas! Escritores, poetas e pintores amigos. Alguns deles, porém, encontram-se entre aqueles com os quais convivi no decurso dos vários encontros literários em que participei. Noutros, através das suas obras, e que fui acompanhando à distância. Os exemplos mais recentes são Gabriel García Marquez e Luís Sepúlveda, este vítima do Covid que nos cerca. De memória (que nunca foi boa),  aqui ficam muitos, se não todos, os nomes, e por ordem aleatória. E que me perdoem algum lapso : Rebelo de Bettencourt, Santos Barros, Ivone Chinita, Fernando de Lima, Ruy Galvão de Carvalho, Borges Martins, Marcolino Candeias, Manuel Machado (Noruega/Terceira), Manuel Ferreira, Manuel Ferreira Duarte (EUA/Pico) Natália Correia, Pedro da Silveira, Carlos Faria, José Sebag, Tibério Cabral, Mário Machado Fraião, Laurindo Cabral, Dias de Melo, Daniel de Sá (Açores); Rui Knopfli, Eduardo White, Ascêncio de Freitas, Malangatana e José Craveirinha (Moçambique); David Mestre, Ruy Duarte de Carvalho (Angola); Lêdo Ivo, Ferreira Gullar (Brasil); Luís de Miranda Rocha, Fernando Assis-Pacheco, Eugénio de Andrade, Urbano Tavares Rodrigues, José Saramago (Continente); Luísa Villalta (Galiza); José Gonçalves e Aurora Homem (Madeira); Paiva de Carvalho (Canadá-Angola) Jim Wong-Chu (Hong Kong/Canadá) Anne Mackay (Canadá), Yorgen Hesse (Alemanha/Canadá) e J. Michale Yates (EUA/Canadá).

***

Procuro uma toalha ao entrar em casa.  Do quarto de banho passo ao resto da casa. Busca infrutífera. 

Estou absolutamente encharcado. A camisa e os calções pregados ao corpo. As sandálias estão de tal modo molhadas que opto por descalçar-me. Descubro, enfim, um solitário rolo de toalhas de papel na cozinha.  Há que improvisar.

Não estarei apresentável quando aparecerem os novos donos à porta. Penso nisso enquanto enxugo a cara, o pescoço e o peito. Estou no centro da sala. Veios de água descem pelas janelas. Olho em redor. 

 Pequenos sacos de plástico dispersos aqui e ali. Uma nudez impressionante. Daqui a pouco deixarei tudo isto. Ficam as paredes e o passado. As memórias vão comigo. Algumas gostaria que ficassem aqui, apagadas sob a espessa tinta do esquecimento. Mas a melancolia. Como desconstrui-la, torná-la em  simples abstracções íntimas?

Diante de nós está o espelho daquilo que somos – omnipresente, delineando, ilustrando, a nossa singularidade. Esquecer é, muitas vezes, a melhor forma de partir. E neste momento sou o último passageiro numa estação vazia.

 Uma miríade de imagens domina-me o espírito. Perco-me nesta sensação estranha e inquietante de ecos que, imperceptíveis, estalam ao meu redor até assumirem uma inaudita posse de comando. Barram inexoravelmente o gesto de folhear a última página da etapa que finda.

Afasto-me da sala mas não posso ir para longe. A casa é pequena.

Fico em silêncio no meio do corredor. O rumor da chuva lá fora, o bater grave e soturno da tarde neste momento de estar aqui, só. Tento compreender a sempre desigual equação dos sentidos. Se estamos bem com as nossas decisões, por quê a nostalgia?

Questiono-me: Quanto pó dos nossos passos se afundam nos dias? Quantos gestos de frustração e glória povoam uma casa? Riso e lágrimas?  Que vínculo marcante desenha o itinerário do futuro?

Daqui a pouco ouvirei a campainha da entrada. À porta estarão estranhos, sem rosto e de máscara. Só através dos olhos verei o sorriso. As vozes soarao abafadas como se atravessassem uma parede.

 Levarei então a mão direita ao bolso para tirar as chaves. Não só lhes entregarei as da casa, como a do meu passado e desta cidade.

Ao sair, não me voltarei para olhar pela última vez as cinzas da minha vida aqui. Temo tornar-me numa estátua de sal.

Pablo

/Eduardo Bettencourt Pinto Estava à entrada de um hotel em La Paz, México, quando o vi pela primeira vez. Era um sujeito baixo, calvo, com o ar grave e sombrio de um intelectual. Os olhos, escuros e grandes, pareciam fulminar o mundo. Vinha de bermudas … Continue a ler Pablo

Novo livro de Eduíno de Jesus

Foi lançado recentemente o livro de poesia Como Tenuíssima Espuma de Luz, de Eduíno de Jesus. Grande vulto da poesia portuguesa, natural de S.Miguel, Açores, E.J. é um enorme mestre da palavra. Na sua dialética, formal e estética, descobrimos com gáudio e deslumbramento a arte e eloquência de um talento genuíno, o artífice cujo ofício é depurar a palavra até à exaustão. É absolutamente notável o raro poder expressivo em cuja transcendência nos quedamos, felizes leitores, impressionados. Um diamante polido no trato e na postura, a sua presença leva-nos a um tempo em que a vida apetece pela imensa gentileza de carácter, demonstrada até ao mais pequeno detalhe da sua inquestionável grandeza. Saber estar neste mundo é também uma forma de arte.

Aqui fica um poema que transcrevo deste seu belíssimo livro, uma edição de luxo da Publiçor, com belos desenhos de Artur Bual, grande artista plástico português infelizmente já desaparecido.

A flor na água
/Eduíno de Jesus

A imagem da flor
reflectida na água
não tem dentro.

É como
o amor a dor a fome o gume
do canto.

No entanto,
ondula na água como
a flor real ao vento.

E assim como
a flor real que lhe empresta a forma
o vento um dia, por fim, destrói,

assim também,
sem ser tocada
de nenhum vento real

(senão aquém
onde ondulava
o seu suporte),

a imagem
se apaga na água
– e tudo acaba como

se a morte também
tocasse real-
mente

aquela flor de nada.