Scrappy

/Eduardo Bettencourt Pinto

Os olhos luziam no escuro da caixa enquanto, num carrinho do aeroporto, nos aproximávamos do carro, estacionado frente à saída da zona internacional. Scrappy veio do albergue canino A Dog’s New Life, na Baía de Banderas, Bucerias, México, a cerca de 20 quilómetros a norte de Puerto Vallarta.  Este canil, criado por Jessica Garibay Pineda, natural da cidade do México, iniciou-se em 2018.

Vinha cansado, letárgico e desconfiado. Deixámo-lo sair brevemente para aliviar a bexiga e saciar a sede. Cheirou o ar ainda frio de Março de cabeça erguida numa vã tentativa de identificar o local. Depois olhou para nós com uma expressão curiosa.

Foi difícil meter a caixa, de plástico duro, no assento de trás do carro. Scrappy, rijo, atlético, embora de tamanho mediano, voltou à caixa de um salto. Acomodou-se com a resignação de um penitenciário sem recursos.

Chegámos ao apartamento trinta e cinco minutos depois. A noite, cerrada, deixava na relva uma mancha húmida e luzidia do rocio nocturno. Scrappy farejou os arbustos e a relva com a eficiência de um radar. Alçou depois a pata hercúlea asseverando a sua autoridade de macho.

Mal entrámos no apartamento fomos directos à cozinha.

Devorou num instante duas rações. O prato de alumínio ficou a brilhar. Parecia ter sido lavado com esmero e lixívia. Fixou em nós um olhar insistente. Entreolhámo-nos. Não, era melhor ficar por ali. Scrappy comeria até inchar como um elefante.

Dormiu a noite inteira como um anjo saciado. Levantou-se pelas sete da manhã, revigorado e com espírito de missão. Sacudiu as orelhas, espreguiçou-se, e olhou para mim com uma expressão inquisidora como se quisesse comunicar comigo em espanhol:

 «Qué hacemos, amigo?»

Piscou os olhos escuros, lunares e enigmáticos, enquanto lhe acariciava o pelo curto das costas.

«Entonces?»

Ok, vamos embora.

Na rua, voltou à sua actividade de inspector – farejando, alçando a pata curta e musculosa quando julgava pertinente, e tudo o mais que um cão faz com o descaro da espécie.

De coleira e trela, e prisioneiro do meu braço, era evidente a sua estranheza. Não estava habituado a ser refreado. Puxava quanto podia, irreverente e ansioso. Vinha acostumado ao largo espaço do canil, às corridas sem restrições nos longos e solares dias mexicanos. Quando andou abandonado pelas ruas, esteve sujeito às confrontações territoriais e de sobrevivência com outros cães. Desse tempo ostentava sequelas aqui e ali no focinho de guerreiro. Suponho que também os outros cães exibam as marcas dos seus dentes.

A sua adaptabilidade, porém, ao novo ambiente foi notável. Em poucas horas habituou-se às normas que lhe foram impostas em termos de comportamento e restrições, mostrando, por outro lado, uma insuspeitável doçura.

Na viagem de hora e meia no ferry, a meio da tarde, portou-se como um cavalheiro.

Na gare esperava o casal que o adoptara. Tínhamos sido apenas os intermediários. Ajudámos voluntariamente nesta última etapa. Os novos donos, vivendo nos arredores de Vitória,  estavam sujeitos às limitações do horário do ferry. Como Scrappy chegava tarde, teriam de ficar num hotel e regressar a casa no dia seguinte.

Enquanto os três se afastavam no parque de estacionamento em direcção ao carro, Scrappy voltava-se para trás, confuso. Teria corrido para nós se fosse solto.

Senti um nó na garganta. Sentei-me num banco virado para o mar. Precisava de distrair os olhos e aquele estranho sentimento de perda.

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